17 de Outubro de 2011

17 de Outubro de 2011
na UNIRIO

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

LIXO CIVILIZATÓRIO E ESCOLA

         Léa Tiriba
julho de 2001

Podemos dizer que as crianças, hoje, ao nascer, encontram um quadro planetário sócio-ambiental que é um lixo? Como é possível fazer uma educação que - ao invés de atrapalhar, ao invés de confundi-las com o próprio lixo que a civilização foi e é ainda capaz de produzir - possa alimentar sua humanidade, possa ajudá-las a romper com a fatalidade de uma realidade que é atroz, cruel, inumana?
O lixo civilizatório está relacionado à ambição, à propriedade privada dos bens que são de todos. O lixo pessoal, social e ambiental que a sociedade do capital produz se sustenta numa dificuldade de aceitação das diferenças; uma intolerância que se situa em nível macro, em nível das relações econômicas e políticas que marcam os espaços sociais  mais amplos; está relacionada a um “outro” distante, desconhecido, bárbaro, selvagem, estrangeiro. Mas o lixo civilizatório se situa também - é gerado em e é reproduzido - no seio das famílias, na escola, nas interações humanas que envolvem o eu e o tu, o eu e o nós familiar, vizinho, comunitário...
Os espaços micro geram, reproduzem, alimentam a perversidade do universo maior do qual fazem parte. Esta constatação é importante porque evita um maniqueísmo muito comum, que atribui sempre ao campo social mais amplo, da economia e da política, fenômenos que se situam também no plano do privado. A crueldade, a violência, os pensamentos e as ações de intolerância, de discriminação das diferenças estão presentes nas relações interpessoais e familiares, entre mulheres e homens, entre pais e filhos, professores e alunos, nas relações entre vizinhos e entre grupos sociais e povos distintos. Os dados estatísticos estão ai para confirmar: 70% dos atos de violência contra as mulheres são cometidos dentro de casa, nos espaços de intimidade familiar. O mesmo acontece no caso da violência contra as crianças. De acordo com Lauro Monteiro, presidente da Associação Brasileira de Proteção à Infância e à Adolescência (ABRAPIA), o maior desafio é quebrar o código de silêncio que existe dentro de casa. Há omissão até mesmo em relação à situações de abuso sexual. (Jornal do Brasil, 07/07/2001).
O sentimento, a subjetividade que gera a violência doméstica praticada contra as crianças no cotidiano de vida familiar seria o mesmo sentimento de intolerância ao outro que gerou o horror dos campos de concentração nazistas e stalinistas? Em que medida elas se relacionam com a violência institucionalizada pelo modo de produção capitalista? É a violência do sistema que gera a violência interpessoal e grupal? A violência subjetiva, individual e interpessoal estariam na origem da perversidade do capitalismo?
Por que continuamos a reproduzir os princípios/valores do liberalismo no cotidiano de nossas vidas, em especial no cotidiano da escola? Em que medida nossas propostas de educadores preocupados com a construção de um mundo afetivo, responsável e solidário reproduzem, na prática concreta do dia-a-dia, os valores que são fundamentais à sustentação do capitalismo, em especial o individualismo?
Uma das respostas possíveis é que os conhecimentos teóricos de que dispomos, as contribuições do materialismo histórico e da micro-política, as críticas que fazemos a uma ciência que privilegia o individual em detrimento do coletivo se situam fundamentalmente ao nível do racional, e estão ainda longe de constituírem-se enquanto valores que tenham a força de orientar as nossas ações/relações no sentido do coletivo. Na base do agir e do pensar estão valores liberais, estruturados ao longo da vida e, por isto, o profundamente enraizados. Para que nos referenciemos em outros valores que estejam em consonância com nossos objetivos de um mundo afetivo, responsável, plural e solidário precisamos, portanto, ensaiar uma espécie de “olha-te a ti mesmo” que busque identificar e questionar os modos de funcionamento, as relações de cada um consigo mesmo, com o companheiro e com seu grupo social: na família, no trabalho, na escola, na vida em sociedade. Talvez a família seja a instituição que mais colabora para a carência de solidariedade, que se exacerba neste final de século: a família cuida de si e assim reproduz os princípios liberais do individualismo e da propriedade. Marx e Engels já nos explicaram o fenômeno, mas o fato é que continuamos nos movendo em círculo, sempre em torno dela.
   O que nos perguntamos é através de que caminhos poderemos implementar macros e micros políticas socio-educacionais que nos conduzam à satisfação de necessidades básicas de todos, à alegria do encontro com o outro, ao afeto, ao riso, ao invés de nos levar à guerra e à destruição?
       O desafio é, para mim, compreender o espaço mais amplo em que a perversidade – mas também a alegria, o afeto, a compaixão – são gerados. E a partir daí, fazer um segundo exercício: o de aprofundar as relações entre o macro planetário e o micro cotidiano. É no contexto destas relações que se insere a busca de caminhos de subversão da ordem subjetiva-objetiva que os define, determinadora da insustentabilidade da vida no planeta, da opressão, da barbárie, da hostilidade entre os seres humanos.
     Quais foram as contribuições do materialismo histórico para a instituição desta ordem? Que sentimentos/concepções/ princípios liberais estão imiscuídas, ou melhor, são parte inalienável de seu corpo teórico? Por que razão “se perderam”, ao longo do tempo, as reflexões de alguns socialistas utópicos do século XIX, entre eles Charles Fourrier e Flora Tristan, cujo trabalho está centrado na questão da felicidade humana, dos prazeres do corpo, da relação com a natureza, do feminino.    
       As respostas a estas perguntas certamente nos ajudarão a repensar as funções sociais da escola, tendo, como referência, a certeza de que a partir de agora o desafio não é ensinar às crianças a reproduzirem a sociedade industrial! O desafio de agora é a produção de uma sociedade sustentável, de equilíbrio entre as ecologias pessoal, social e ambiental!
       A escola é, hoje, talvez o único espaço social que é freqüentado diariamente, e durante um número significativo de horas por adultos e crianças. É, portanto, um espaço privilegiado para esta busca, para a instituição de práticas educativas que assegurem a integridade de cada ser, sejam alimentadores de relações fraternas entre os membros da espécie e preservadoras da biodiversidade que assegura a qualidade da vida na Terra.


Palavras-chave: CAPITALISMO; ESCOLA; HUMANIZAÇÃO; INDIVIDUALISMO;  INTERAÇÕES HUMANAS; INTOLERÂNCIA; LIXO; VIOLÊNCIA DOMÉSTICA;  SOCIEDADE INDUSTRIAL;  SOCIEDDE SUSTENTÁVEL.

Sobre o autor: Léa Tiriba é professora do Curso de Especialização em Educação Infantil da PUC-Rio, assessora/consultora de secretarias municipais de educação e coordenadora da rede humanidade criança.
Contexto de Produção: Texto extraído do trabalho "Entre o verde-chumbo e a púrpura: pincelando uma quadro das condições de existência da espécie e do planeta", destinado à encontros de formação de professores. Rio de Janeiro/Brasil.
Produtor/Contato: redehumanidadecrianca@grupos.com.br

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